Monday, October 06, 2008


"Pode o nada existir?", questionavam-se os gregos. A pergunta é uma mistura hedionda de sofisma e antinomia, mas conheço poucas que sejam mais transcendentes. E a indagação pode ser grega, mas sua origem é babilônica. Foram os babilônios que inventaram o zero, revolucionando a matemática, deixando a filosofia, e a todos nós, de cabelos em pé. Sim, o nada é um dos três ou quatro – cinco, que seja – conceitos ultrajantes o suficiente para mexer com nosso penteado. Há algo de repulsivo nessa inexistência e fugimos dela como fugimos de um cão sarnento.
Mas falo do nada quando queria falar do vazio. Note que o vazio carrega consigo uma ausência que, com o perdão do trocadilho, não está presente no nada. E era fim de aula, numa sexta-feira, quando um aluno me chega com essa: "o vácuo existe?". O aluno em questão é o mais brincalhão da turma, e eu, interpretando a pergunta como um gracejo, o dispenso com uma frase de singela ironia: "ali tem um". E disse isso levantando um das mãos, apontando para uma lâmpada incandescente, enquanto apagava o quadro com a outra, sem nem mesmo me virar para ele. "Mas que diabos", logo pensei, "alguém me chega com a primeira pergunta interessante de hoje e eu o dispenso dessa maneira?". Eu não ia deixar por menos! Meu cérebro se inundou de factóides científicos. Ia citar o vácuo, Demócrito, o sistema sexagesimal e o zero, contudo, ao me virar, o aluno não estava mais lá. Tinha ido embora apressadamente, como apressadamente foram embora as fórmulas que eu finalmente apagara. Era o vazio do quadro que se refletia no vazio da sala e que ressoava no vazio de minha mente, agora sem Demócrito e sem sistema sexagesimal. Era a mais fantasmagórica ironia, uma experiência verdadeiramente perturbadora em seu silêncio: eu contemplava, na sala vazia, o vácuo que se tornou minha vida!

Thursday, September 18, 2008

Há mais bons conselhos num seriado enlatado que em dois terços da Filosofia!
A frase é audaciosa e, a fração, completamente arbitrária. No entanto, insisto: quando em dúvida, feche o livro e ligue a tv.
Se percebeu um pouco de amargor nesse prólogo, é porque ainda não o releu. Releia-o e note que não há pouco. Explico: ateu e com formação em exatas, persigo a filosofia como um cão vadio acossa um automóvel. Quero preencher o vazio normativo que a religião deixou e que a ciência, descritiva, jamais preencherá.
A ciência descreve a química do beijo, o neurotransmissor da paixão, a mórula e a blástula; a viabilidade de uma relação, contudo, quem me dirá? A filosofia é que não, já que, preocupada em me definir como ente – e, de preferência, à maneira dos geômetras! – não me responde o essencial, o indispensável: como viver bem? E assim, quando a filosofia cede aos meus latidos, percebo que de nada adianta, e saio com o rabo entre as pernas.
E falei em viabilidade de relação por um motivo: fui acometido, recentemente, por uma paixão que foi rápida e intensa como uma chuva de verão, e ainda deixou alguns estragos.
Por que o relacionamento não frutificou? Não sei a resposta. Nem sabe a ciência. E a filosofia, bem, esta já virou a esquina. Mas eis que a televisão – numa reinterpretação magistral daquilo que os filósofos chamariam de "versão temporal do princípio copernicano" – com a competência e sabedoria de um Proust moderno, resumiu, em uma frase, toda a problemática dos relacionamentos: "Com sua cara metade, nunca faça planos para um futuro mais distante do que o tempo que vocês já estão juntos". É isso! Uma semana de relação? Contenha-se em sonhar no máximo uma semana a frente.
E, findo o post, dêem-me licença. Vou assistir enlatados e aprender a viver bem.

Thursday, June 29, 2006




Há quem diga que existem dois tipos de pessoas: as que dividem todo o mundo em dois tipos de pessoas e as outras. E foi ontem que descobri pertencer ao primeiro grupo. Não se deixe enganar com a aparente comicidade da afirmação: nada pode ser mais sério. Sim, eu, o antimaniqueísta, sou, no fundo, um maniqueísta!
Era meia-noite, a hora que, para Allan Poe, apavora. Estávamos numa boate jogando bilhar. E o que pode ser mais inocente que jogar bilhar com amigos? Pois bem: uma garota, cheia de malícia e malevolência,
se aproxima de mim e dispara: "Quem é o teu amigo?". Ora, eu estava com uns dez amigos e mais uns conhecidos e, confuso, revidei: "Mas qual deles?". Ela: "Esse!". E apontava com o indicador, movimentando-o rente a mesa, quase tirando as bolas da posição. Ora, era o irmão de um grande amigo meu. Recém-noivo. Gente finíssima. Eu, pensando que nada poderia sair do encontro da malícia com o compromissado e, preocupado com a integridade do jogo que eu finalmente vencia, não tardei em aproximá-los. Cinco minutos e o jogo acabou -- perdi! Olhei de relance: o papo entre eles corria solto, com gargalhadas infinitas e cochichos igualmente longos. Me aproximei dele e falei: "Você tá com uma aliança no dedo!" E ele, me dando ombros: "E o que tem a ver?" Ora, para mim, tem tudo: se ele ama a noiva aquilo era o adultério com banda, bebidas e convidados.
Depois de uma meia hora, a amiga da malevolência (não havia dito? Que seja: ela tinha uma amiga) começa a me olhar. Depois de varrer a boate com os olhos infinitas vezes, dançar sozinha, ir ao banheiro umas três vezes, a amiga, súbita e supostamente, se interessa por mim. Meu amigo fala: "Ela tá de rolo, mas tem nada não. Chega, chega!" E, ato contínuo, beija a malícia.
E foi aí que entendi. Há dois tipos de pessoas: as que procuram recompensas imediatas, e as que se irritam por nunca ter recompensas. Agindo sob a vigilância de uma suposta moral, nunca me permito passar por cima dos outros; nem mesmo de rolos. E, sobretudo: não quero sobras. Ela, depois de observar toda a boate e ver que não havia nada... bem, havia eu.
Fiquei somente com a certeza de ter descoberto um dos problemas de nosso mundo -- e do cristianismo: para os quem anseiam ter um mínimo de princípios, não há retorno, não há recompensas. "Tu é muito besta, doido." disse-me ele, pouco antes que eu fosse embora. É, sou mesmo.

Wednesday, December 07, 2005



Viajar -- ou seria voar? Voar, fiquemos com voar -- sempre me pareceu uma experiência cosmopolita. Voando nos tornamos donos do mundo e posamos de importante sem ser. E é como em um episódio de Além da Imaginação: um cochilo e, ao acordarmos, estamos num lugar desconhecido, tudo diferente. Mas falo do lateral e esqueço do principal: só temos olhos para o belo. Aos que não entenderam a conexão, paciência.
A cena requer descrição e, como não sou Proust, feche os olhos para auxiliar na abstração -- ou, por outra: não os feche, continue lendo; aperte-os tão somente! -- Voltemos: estou na primeira fileira (poltrona 1E, para os obcecados por detalhes) olhando de soslaio uma aeromoça (espetacular) que conversava animadamente com o comissário de bordo, um latagão enorme, bombado ao último. Ele lhe explicava como obter água potável numa floresta ou algo do tipo. E ela sorvia suas palavras como um camelo num oásis. Veja bem: aquela mulher não deve ter acampado uma única vez, nem no quintal de casa. Sua maior aventura deve ter sido viajar sem secador de cabelos. Mas ela só tinha olhos e ouvidos para o Aquiles dos ares.
E, depois um tempo, talvez pelo tema da conversa ou pelo ar-condicionado, fui tomado por uma súbita e fulminante sede. Tiro o cinto, estico o braço (sou baixinho) e chamo, através do botão no painel, a aeromoça. Nada. O tema da conversa agora era outro: ela lhe falava que era do Leblon, e malhava não-sei-onde. Fiquei imaginando que, se Jobim voasse Gol, a música seria Garota do Leblon e talvez não fizesse tanto sucesso.
Depois do devaneio, insisti. Ela: "O que deseja?" Eu: "Água". Nem havia fechado a boca e ela já disparava para a frente da aeronave; trazendo, em seguida, uma barra de cereais. Levantei as sombracelhas. Ela nem tchum: voltou para os bíceps. Ora, não sendo belo ou forte, eu era transparente como água e sem graça como uma barra de cereais. É algo conhecido de todos: somos todos uns pavões, o que nos interessa é a plumagem vistosa -- minha vizinha de poltrona, por sinal, exibia uma plumagem rosa no pescoço. Eu, sem nada a oferecer de visual, não merecia nem a gentileza da água! E, por falta de um copinho, perdi a pose, deixei de ser cosmopolita. Era apenas um simples sedento num deserto com asas.
Ofereci a barra para a emplumada ao lado, que a comeu e disse: "Muito seca, me deu sede." Não me surpreendi.

Sunday, November 13, 2005


Existem coisas que não adianta: só provando. Ninguém é capaz de descrever a textura de um morango, o gosto de um chocolate. Não conheci quem ousasse afirmar: "nunca comi pêras, mas me disseram como é." E ontem compreendi que a saudade é uma pêra, um morango.
Num telefonema, um velho amigo -- ia dizer fundamental -- perguntou: "Que tu tens?" Eu: "Saudades de casa". E ele: "Fala". Ora, ninguém deveria, jamais, pedir que eu fale; mas ele pediu. E, aproveitando o divã telefônico, pus-me a falar da falta que minha família me faz, de como contrato em cartório não transformava alvenaria em lar. Fiz dezenas de analogias e usei palavras nada tropicais como 'prados', 'fiordes'. Eu, empolgado e num rompante medieval, emplaquei até um 'regozijo'. Ele, no desespero do interurbano, interveio: "Me fala por que você anda triste, cacete!". Levei um tempo, mas consegui entender o estranhamento dele: a meio metro dos pais, nem a mais fértil das imaginações o permitiria trocar de lugar comigo, fazê-lo sentir o que eu sentia. A saudade que carrego é, para ele, exótica como um kiwi e distante como um fiorde. Do conforto de seu lar, ele não sente nem brisa de saudades. E a saudade é como o deserto à noite: árida e fria. Árida como três desertos.
"Ah, é só saudades?", indagou, meio indignado, antes de desligar. Eu: "Só".

Wednesday, November 02, 2005




Já havia afirmado aqui e repito: não se fazem mais paixões como antigamente! Minto: o que eu havia dito era que mulheres se apaixonam com frequência, mas dêem-me o desconto. E, com o perdão pelo lapso, sigo para o que eu realmente queria dizer: nos nossos dias, o coração não passa de uma víscera menor. É como um baço ou um fígado. Ou, por outra: é como um apêndice.
Ouvi esses dias num bar: "dane-se o coração, preferia ter dois fígados!". E passo do comentário de meu amigo etílico para o da amiga apaixonada.
É a mesma conversa de dois posts atrás: ela se confessava perdidamente apaixonada por fulano. Perguntei: "E o que tem esse fulano?" Ela: "é lindo, beija bem e é tão cheiroso". Paro a transcrição por aqui. Se você não se surpreendeu, então leia novamente. Olhe só: ela o deseja com os olhos, com a boca e até com o nariz, mas não com o coração! E, nesses tempos de ômega-3 e gorduras poli-insaturadas, nem o cardiologista quer saber dele. Não se ouve mais falar em corações partidos. Veja bem: não há registro, em toda Rio Preto, de um único e escasso caso de coração partido! Corações transpassados? Só na churrascaria.
No bar, pensei alto: "Deveríamos ter dois, três corações até!". "Você é um romântico", disparou o amigo de dois fígados. "Ora, romântico é você!", respondi ofendido, e voltei a jogar bilhar.

Tuesday, October 25, 2005



Não quero nada em específico, quero apenas mais. E nada mais humano que a inconformação: nunca vi um leão frustrado ou uma gazela cabisbaixa. É a derradeira herança genética: querer mais e sempre. E quem há de nos culpar por sermos apenas o bicho que somos? Mas falo do querer quando deveria falar do desejar. E não se deixe enganar pelo dicionário: são coisas bem diferentes. Porque desejo é o querer sem ação, e querer é o desejo com consciência e responsabilidade.
E nesses últimos dias meus mais inespecíficos desejos se materializaram em algo etéreo, onírico e, -- por que não? -- singelo: tudo o que quero agora é dormir. Ou melhor: dormir bem. Sou acompanhado por uma insônia perene, que me segue como um cão ao dono. Já me disseram: "toma umas que você dorme". Ora, eu poderia beber todas e não teria sono. Morreria e não teria sono. Seria, olhe só, um morto insone! Há quem diga que reclamo demais e para esses eu replico: sim, e nada mais humano!
Note que poderia justificar todas minhas idiossincrasias assim: como não sou leão, gazela ou ET, posso querer tudo e reclamar sempre. E eis que lhes entrego, de bandeja, a mais inconstestável justificativa para qualquer coisa: ser humano!